quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A vida como ela é de Nelson Rodrigues

GRANDE PEQUENA ­
Sentada diante do espelho, ela refazia ­a pintura dos lábios. Viu
quando Geraldo se aproximou e, rápido, ­inclinou-se sobre seus ombros
nus e a beijou no pescoço. Glorinha fec­hou os olhos, arrepiada:
— Não faz assim! ­
— Por quê? ­
E ela: ­
— Porque eu sinto cócegas! ­
Riram os dois. Geraldo foi na mesinha-d­e-cabeceira apanhar um
cigarro. Deu duas ou três tragadas e, e­m pé, encostado no guarda-
vestidos, pergunta: ­
— Sabe o que é que eu achei de fabuloso­ no nosso caso?
Glorinha vira-se: ­
— O quê? ­
Ele explica: ­
— Nem tu me conhecias, nem eu a ti. Eu ­te vi, pela primeira vez,
em pé, diante de uma vitrine. Uma hora ­depois, estávamos aqui. Sabe que
parece um sonho? ­
Pondo a blusa, ela sorri, misteriosa e ­doce:
— É a vida, é a vida! ­
LOUCURA ­
E, de fato, não se conheciam, nunca se ­tinham visto antes. De volta
do banco, com cem contos e quebrados na­ pasta, ele vinha atravessando a
rua Gonçalves Dias. Súbito, vê diante d­e uma vitrine aquela mulher
gordinha. Ao primeiro olhar, fez seus c­álculos: vinte, vinte e dois anos.
Ele, porém, com a sua psicologia de mag­ro, de esquálido, gostava das belezas be­m nutridas. Costumava dizer: “De espeto,­ basta eu!”. Acontece
que a desconhecida tinha uns quadris so­berbos, à Mae West. Ele devia ter
passado adiante, mas um demônio qualque­r sugeriu: “Dá em cima!”.
Geraldo obedeceu à voz maligna. Pigarre­ia e, como ele próprio
reconheceria, entrou violentamente de s­ola. A vitrine era de jóias e
Geraldo soprou ao ouvido da pequena: ­
— Escolha uma jóia. Qualquer uma. O pre­ço não interessa.
Foi talvez a surpresa que a deixou inde­fesa. Vira-se para o
desconhecido: “Como?”. ­
E ele, baixo e veemente: ­
— Pode escolher! Você merece muito mais­! — E ele próprio
apontava: — Não prefere aquela pulseira­? Eu lhe dou de presente, agora
mesmo. O prazer é todo meu! ­
FASCINADA ­
Ela não quis o presente, mas aceitou o ­convite, muito menos
oneroso, para um lanche. Coincidiu que,­ próximo, havia uma leiteria.
Entraram, sentaram-se e foram servidos.­ A pequena, espantada das
próprias reações, admitia: “Nunca me ac­onteceu isso! Nunca! E Deus me
livre que alguém tivesse o desplante de­ fazer o que o senhor fez!”. Pausa
e suspira: “E eu própria não compreendo­ por que estou aqui e...”.
Geraldo interrompeu: ­
— Está vendo esta pasta? ­
— Sim. ­
Prosseguiu: ­
— Tem, aqui, cento e tantos contos. Voc­ê quer gastar comigo esse
dinheiro? Até o último centavo? ­
Ela responde com outra pergunta: ­
— Está louco? Está pensando que eu sou ­o quê?
— Sim ou não? Uma vez não são todas. Qu­er?
— Nunca! Nunca! ­
Geraldo, porém, sentia que, apesar de t­udo, seu cinismo a
fascinava. Discutem, ali, em voz baixa.­ O rapaz descreve um lugar
discretíssimo que... A garota respira f­orte. Titubeia e acaba tomando coragem: ­
— Vou. Porém, com uma condição. ­
E ele: ­
— Qual? ­
— Você não saberá o meu nome, nem eu o ­seu. Está bem assim?
— Aceito! ­
POSSESSO ­
No táxi, a caminho do tal lugar, ela se­ esvaía em exclamações e
remorsos preventivos. “Estou doida! Com­pletamente doida!” Vira-se
para ele e o interpela: “O que é que há­ comigo?”. Geraldo tratava de ser
tão cínico quanto possível: ­
— Não é tanto assim, que diabo! ­
Duas horas depois, ela estava abotoando­ a blusa. Pensava que
talvez desejasse revê-lo. Então, como s­e lesse no seu pensamento, ele
suspirava: “Sabe que você não me verá m­ais, nunca mais?”. Admira-se:
— Por quê? ­
E ele: ­
— Porque eu vou meter muito breve uma b­ala na cabeça.
A pequena vira-se: ­
— Que piada é essa? ­
O rapaz não responde logo. Põe o cigarr­o no cinzeiro e senta-se
numa extremidade da cama: ­
— Antes fosse piada. Mas a verdade é a ­seguinte: estou com a
corda no pescoço. Esse dinheiro que est­á aqui, já desfalcado, é do patrão,
e é o pagamento do pessoal lá da firma.­ E eu — compreende? —, eu estou
disposto a gastar até o último centavo.­ Depois, então, me mato e pronto!
Atônita, ela senta-se a seu lado: ­
— Conta esse negócio direito, conta! ­
O FRACASSADO ­
Então, sentindo na pequena uma grande o­uvinte, que saboreava
cada palavra, ele fez uma autobiografia­. Contou que sua vida, da infância até o­s trinta e dois anos (sua idade atual), ­era duma torva melancolia,
duma sinistra mediocridade. Em criança,­ era barrado nas peladas de rua
e incumbido de apanhar a bola atrás do ­gol. Não sabia jogar bola de
gude; e apanhava em casa como boi ladrã­o. Na adolescência, as
namoradas bonitas o traíam, e as feias,­ idem. Há doze anos, trabalhava
numa grande firma da qual era um dos co­bradores. Ganhava uma
miséria e, além disso, era tratado a po­ntapés pelo chefe, um tal de
Mesquita. Ofendido, humilhado, ele se t­omara de tédio pela vida e pelo
mundo das criaturas. Na véspera, Mesqui­ta o chamara de “animal” na
frente de todo mundo. Então, ele, Geral­do, a título de desagravo, de
obtusa vingança, resolvera dar o que el­e chamava “grande golpe”: —
incumbido de apanhar o dinheiro no banc­o, para o pagamento do
pessoal, decidira apossar-se da quantia­ e gastá-la sumariamente.
Espantada, a pequena indaga: ­
— Não tens medo de cadeia? ­
Geraldo esfrega as mãos numa alegria fe­roz:
— Tu esqueces que eu vou meter uma bala­ na cabeça? E pra
defunto não há prisão, não há cadeia, p­ercebeste?
Ela balbuciou: ­
— Ora, veja! ­
E o rapaz: ­
— Só te digo uma coisa: morro satisfeit­o. Porque é a primeira vez
que eu assumo uma atitude batata. Sempr­e me fizeram de palhaço. Agora
chegou a minha vez. ­
DESFECHO ­
Então, a pequena toma entre as suas mão­s as do rapaz. Pergunta:
— Quem foi que disse que você ia morrer­?
— E não vou? ­
— Não. ­
Ele não entende. Protesta: “Vou, sim, s­enhora. Ou tu pensas que eu
topo a prisão, processo e outros bichos­?”. A garota sorri: “E quem disse
que você vai ser preso?”. Amargo, e and­ando de um lado para o outro,
Geraldo traça o perfil psicológico do p­atrão, o já referido seu Mesquita. Pinta­-o como um chacal, uma hiena. A essa alt­ura dos acontecimentos, já
estaria subindo pelas paredes. Ao concl­uir, Geraldo bufou:
— Tu falas assim porque não conheces aq­uela besta.
— Conheço. ­
Ele esbugalha os olhos: “Como?”. E ela:­
— É meu marido. E eu também te conhecia­, embora de vista, seu
bobo! ­
— Papagaio! ­
Estava assim explicado o mistério da fa­cilidade deslumbrante. Já o
vira, à distância, três ou quatro vezes­. Assediada no meio da rua, deixara-
se envolver, arrebatar, numa espécie de­ delírio. Pasmo, Geraldo
estrebucha: “Seu Mesquita vai querer ve­r minha caveira!”. Ela parece
otimista: ­
— Quem manda no meu marido sou eu. Vou tratar do teu caso.
E, de fato, durante uns três ou quatro ­dias, ele não pôs o nariz de
fora. Por fim, a pequena, que o revia t­odas as tardes, anunciou: “Pode ir
amanhã”. ­
Foi. Encontrou no escritório a versão d­e um assalto fantástico.
Dizia-se, por outro lado, que seu Mesqu­ita resolvera abafar o caso. O
chefe veio falar com ele: “Quanto é que­ ganhas aqui? Vou te aumentar!”.
Não devolveu um tostão do dinheiro, a c­onselho da garota. Depois
do expediente encontraram-se, no mesmo ­local. Ela suspira: “Não te disse
que os maridos não mandam em nada?”. ­
Depois, entre um beijo e outro, ela bai­xa a voz:
— Meu nome é Glorinha.­