GRANDE PEQUENA
Sentada diante do espelho, ela refazia a pintura dos lábios. Viu
quando Geraldo se aproximou e, rápido, inclinou-se sobre seus ombros
nus e a beijou no pescoço. Glorinha fechou os olhos, arrepiada:
— Não faz assim!
— Por quê?
E ela:
— Porque eu sinto cócegas!
Riram os dois. Geraldo foi na mesinha-de-cabeceira apanhar um
cigarro. Deu duas ou três tragadas e, em pé, encostado no guarda-
vestidos, pergunta:
— Sabe o que é que eu achei de fabuloso no nosso caso?
Glorinha vira-se:
— O quê?
Ele explica:
— Nem tu me conhecias, nem eu a ti. Eu te vi, pela primeira vez,
em pé, diante de uma vitrine. Uma hora depois, estávamos aqui. Sabe que
parece um sonho?
Pondo a blusa, ela sorri, misteriosa e doce:
— É a vida, é a vida!
LOUCURA
E, de fato, não se conheciam, nunca se tinham visto antes. De volta
do banco, com cem contos e quebrados na pasta, ele vinha atravessando a
rua Gonçalves Dias. Súbito, vê diante de uma vitrine aquela mulher
gordinha. Ao primeiro olhar, fez seus cálculos: vinte, vinte e dois anos.
Ele, porém, com a sua psicologia de magro, de esquálido, gostava das belezas bem nutridas. Costumava dizer: “De espeto, basta eu!”. Acontece
que a desconhecida tinha uns quadris soberbos, à Mae West. Ele devia ter
passado adiante, mas um demônio qualquer sugeriu: “Dá em cima!”.
Geraldo obedeceu à voz maligna. Pigarreia e, como ele próprio
reconheceria, entrou violentamente de sola. A vitrine era de jóias e
Geraldo soprou ao ouvido da pequena:
— Escolha uma jóia. Qualquer uma. O preço não interessa.
Foi talvez a surpresa que a deixou indefesa. Vira-se para o
desconhecido: “Como?”.
E ele, baixo e veemente:
— Pode escolher! Você merece muito mais! — E ele próprio
apontava: — Não prefere aquela pulseira? Eu lhe dou de presente, agora
mesmo. O prazer é todo meu!
FASCINADA
Ela não quis o presente, mas aceitou o convite, muito menos
oneroso, para um lanche. Coincidiu que, próximo, havia uma leiteria.
Entraram, sentaram-se e foram servidos. A pequena, espantada das
próprias reações, admitia: “Nunca me aconteceu isso! Nunca! E Deus me
livre que alguém tivesse o desplante de fazer o que o senhor fez!”. Pausa
e suspira: “E eu própria não compreendo por que estou aqui e...”.
Geraldo interrompeu:
— Está vendo esta pasta?
— Sim.
Prosseguiu:
— Tem, aqui, cento e tantos contos. Você quer gastar comigo esse
dinheiro? Até o último centavo?
Ela responde com outra pergunta:
— Está louco? Está pensando que eu sou o quê?
— Sim ou não? Uma vez não são todas. Quer?
— Nunca! Nunca!
Geraldo, porém, sentia que, apesar de tudo, seu cinismo a
fascinava. Discutem, ali, em voz baixa. O rapaz descreve um lugar
discretíssimo que... A garota respira forte. Titubeia e acaba tomando coragem:
— Vou. Porém, com uma condição.
E ele:
— Qual?
— Você não saberá o meu nome, nem eu o seu. Está bem assim?
— Aceito!
POSSESSO
No táxi, a caminho do tal lugar, ela se esvaía em exclamações e
remorsos preventivos. “Estou doida! Completamente doida!” Vira-se
para ele e o interpela: “O que é que há comigo?”. Geraldo tratava de ser
tão cínico quanto possível:
— Não é tanto assim, que diabo!
Duas horas depois, ela estava abotoando a blusa. Pensava que
talvez desejasse revê-lo. Então, como se lesse no seu pensamento, ele
suspirava: “Sabe que você não me verá mais, nunca mais?”. Admira-se:
— Por quê?
E ele:
— Porque eu vou meter muito breve uma bala na cabeça.
A pequena vira-se:
— Que piada é essa?
O rapaz não responde logo. Põe o cigarro no cinzeiro e senta-se
numa extremidade da cama:
— Antes fosse piada. Mas a verdade é a seguinte: estou com a
corda no pescoço. Esse dinheiro que está aqui, já desfalcado, é do patrão,
e é o pagamento do pessoal lá da firma. E eu — compreende? —, eu estou
disposto a gastar até o último centavo. Depois, então, me mato e pronto!
Atônita, ela senta-se a seu lado:
— Conta esse negócio direito, conta!
O FRACASSADO
Então, sentindo na pequena uma grande ouvinte, que saboreava
cada palavra, ele fez uma autobiografia. Contou que sua vida, da infância até os trinta e dois anos (sua idade atual), era duma torva melancolia,
duma sinistra mediocridade. Em criança, era barrado nas peladas de rua
e incumbido de apanhar a bola atrás do gol. Não sabia jogar bola de
gude; e apanhava em casa como boi ladrão. Na adolescência, as
namoradas bonitas o traíam, e as feias, idem. Há doze anos, trabalhava
numa grande firma da qual era um dos cobradores. Ganhava uma
miséria e, além disso, era tratado a pontapés pelo chefe, um tal de
Mesquita. Ofendido, humilhado, ele se tomara de tédio pela vida e pelo
mundo das criaturas. Na véspera, Mesquita o chamara de “animal” na
frente de todo mundo. Então, ele, Geraldo, a título de desagravo, de
obtusa vingança, resolvera dar o que ele chamava “grande golpe”: —
incumbido de apanhar o dinheiro no banco, para o pagamento do
pessoal, decidira apossar-se da quantia e gastá-la sumariamente.
Espantada, a pequena indaga:
— Não tens medo de cadeia?
Geraldo esfrega as mãos numa alegria feroz:
— Tu esqueces que eu vou meter uma bala na cabeça? E pra
defunto não há prisão, não há cadeia, percebeste?
Ela balbuciou:
— Ora, veja!
E o rapaz:
— Só te digo uma coisa: morro satisfeito. Porque é a primeira vez
que eu assumo uma atitude batata. Sempre me fizeram de palhaço. Agora
chegou a minha vez.
DESFECHO
Então, a pequena toma entre as suas mãos as do rapaz. Pergunta:
— Quem foi que disse que você ia morrer?
— E não vou?
— Não.
Ele não entende. Protesta: “Vou, sim, senhora. Ou tu pensas que eu
topo a prisão, processo e outros bichos?”. A garota sorri: “E quem disse
que você vai ser preso?”. Amargo, e andando de um lado para o outro,
Geraldo traça o perfil psicológico do patrão, o já referido seu Mesquita. Pinta-o como um chacal, uma hiena. A essa altura dos acontecimentos, já
estaria subindo pelas paredes. Ao concluir, Geraldo bufou:
— Tu falas assim porque não conheces aquela besta.
— Conheço.
Ele esbugalha os olhos: “Como?”. E ela:
— É meu marido. E eu também te conhecia, embora de vista, seu
bobo!
— Papagaio!
Estava assim explicado o mistério da facilidade deslumbrante. Já o
vira, à distância, três ou quatro vezes. Assediada no meio da rua, deixara-
se envolver, arrebatar, numa espécie de delírio. Pasmo, Geraldo
estrebucha: “Seu Mesquita vai querer ver minha caveira!”. Ela parece
otimista:
— Quem manda no meu marido sou eu. Vou tratar do teu caso.
E, de fato, durante uns três ou quatro dias, ele não pôs o nariz de
fora. Por fim, a pequena, que o revia todas as tardes, anunciou: “Pode ir
amanhã”.
Foi. Encontrou no escritório a versão de um assalto fantástico.
Dizia-se, por outro lado, que seu Mesquita resolvera abafar o caso. O
chefe veio falar com ele: “Quanto é que ganhas aqui? Vou te aumentar!”.
Não devolveu um tostão do dinheiro, a conselho da garota. Depois
do expediente encontraram-se, no mesmo local. Ela suspira: “Não te disse
que os maridos não mandam em nada?”.
Depois, entre um beijo e outro, ela baixa a voz:
— Meu nome é Glorinha.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário